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Eduardo Viveiros de Castro

Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena

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    Embora isso pareça ir ao encontro da noção ameríndia de que a humanidade é a forma universal da agência, o juízo de Marx é, na verdade, sua inversão absoluta. Ele está dizendo que os humanos podem ser qualquer animal, que temos mais Ser que qualquer outra espécie; os índios, ao contrário, dizem que qualquer animal pode ser humano, que há mais Ser em um animal do que parece. O Homem é o animal universal em dois sentidos inteiramente diferentes: a universalidade é antropocêntrica no caso de Marx, e antropomórfica no caso indígena.
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    Ao criar um mundo objetivo por meio de sua atividade prática, ao trabalhar a natureza inorgânica, o homem prova a si mesmo ser uma espécie consciente [...] Sem dúvida, os animais também produzam [...] Mas um animal só produz o que necessita imediatamente para si mesmo ou sua prole. Ele produz unilateralmente, ao passo que o homem produz universalmente [...] Um animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz o todo da natureza [...] Um animal forma as coisas em conformidade com o padrão e as necessidades de sua espécie, ao passo que o homem produz em conformidade com os padrões de outras espécies (Marx 1961 [1844]: 75-76 apud Sahlins 1996).
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    Deixemos claro: os animais e outros entes dotados de alma não são sujeitos porque são humanos (disfarçados), mas o contrário – eles são humanos porque são sujeitos (potenciais). Isto significa dizer que a Cultura é a natureza do Sujeito; ela é a forma pela qual todo agente experimenta sua própria natureza. O animismo não é uma projeção figurada das qualidades humanas substantivas sobre os não-humanos; o que ele exprime é uma equivalência real entre as relações que humanos e não-humanos mantêm consigo mesmos: os lobos veem os lobos como os humanos veem os humanos – como humanos. O homem pode bem ser, é claro, um “lobo para o homem”; mas, em outro sentido, o lobo é um homem para o lobo. Pois se, como sugeri, a condição comum aos humanos e animais é a humanidade, não a animalidade, é porque humanidade é o nome da forma geral do Sujeito.
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    A forma corporal humana e a cultura – os esquemas de percepção e ação “encorporados”{32} em disposições específicas – são atributos pronominais do mesmo tipo que as autodesignações acima discutidas. Esquematismos reflexivos ou aperceptivos (“reificações” sensu Strathern 1988), tais atributos são o modo mediante o qual todo agente se apreende, e não predicados literais e constitutivos da espécie humana projetados “metaforicamente”, ou seja, impropriamente, sobre os não-humanos. Esses atributos são imanentes ao ponto de vista, e se deslocam com ele. O ser humano – naturalmente – goza da mesma prerrogativa, e portanto, como diz a enganadora tautologia de Baer (ver supra p. 350), “vê-se a si mesmo como tal”.
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    o perspectivismo ameríndio procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito; será sujeito quem se encontrar ativado ou “agenciado” pelo ponto de vista.{30} É por isso que termos como wari’ (Vilaça 1992), dene (McDonnell 1984) ou masa (Århem 1993)significam “gente”, mas podem ser ditos por – e portanto ditos de – classes muito diferentes de seres; ditos pelos humanos, designam os seres humanos, mas ditos pelos queixadas, guaribas ou castores, eles se autorreferem aos queixadas, guaribas ou castores.
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    Assim, as autodesignações coletivas de tipo “gente” significam “pessoas”, não “membros da espécie humana”; e elas são pronomes pessoais, registrando o ponto de vista do sujeito que está falando, e não nomes próprios. Dizer então que os animais e espíritos são gente é dizer que são pessoa; é atribuir aos não-humanos as capacidades de intencionalidade consciente e de agência que facultam a ocupação da posição enunciativa de sujeito. Tais capacidades são reificadas na alma ou espírito de que esses não-humanos são dotados. É sujeito quem tem alma, e tem alma quem é capaz de um ponto de vista. As almas ou subjetividades ameríndias, humanas ou não-humanas, são assim categorias perspectivas, dêiticos cosmológicos cuja análise pede menos uma psicologia substancialista que uma pragmática do signo (Viveiros de Castro 1992b; Taylor 1993a; 1996).{29}
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    as categorias indígenas de identidade coletiva têm aquela enorme variabilidade de escopo característica dos pronomes, marcando contrastiva e contextualmente desde a parentela imediata de um Ego até todos os humanos, ou todos os seres dotados de consciência; sua coagulação como etnônimo parece ser, na maioria dos casos, um artefato produzido no contexto da interação com o etnógrafo.
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    Duas antinomias, portanto, que são de fato uma só: ou os ameríndios são etnocentricamente avaros na extensão do conceito de humanidade, e opõem totemicamente natureza e cultura; ou eles são cosmocêntricos e anímicos, e não professam tal distinção, sendo mesmo modelos de tolerância relativista, ao admitir a multiplicidade de pontos de vista sobre o mundo. Em suma: fechamento sobre si, ou “abertura ao Outro” (Lévi-Strauss 1991: 16)?

    Penso que a solução para essas antinomias não está em escolher um lado, sustentando, por exemplo, que a versão mais recente é a justa e relegando a outra às trevas pré-pós-modernas. Trata-se mais bem de mostrar que tanto a tese como a antítese são razoáveis (ambas correspondem a intuições etnográficas sólidas), mas que elas apreendem os mesmos fenômenos sob aspectos distintos; e também de mostrar que ambas são imprecisas, por pressuporem uma concepção substantivista das categorias de natureza e cultura (seja para afirmá-las ou para negá-las) inaplicável às cosmologias ameríndias.
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    Os selvagens não são mais etnocêntricos, mas cosmocêntricos; em lugar de precisarmos provar que eles são humanos porque se distinguem dos animais, trata-se agora de mostrar quão pouco humanos somos nós, que opomos humanos e não-humanos de um modo que eles nunca fizeram: para eles, natureza e cultura são parte de um mesmo campo sociocósmico. Os ameríndios não somente passariam ao largo do Grande Divisor cartesiano que separou a humanidade da animalidade, como sua concepção social do cosmos (e cósmica da sociedade) anteciparia as lições fundamentais da ecologia, que apenas agora estamos em condições de assimilar (Reichel-Dolmatoff 1976; Wagner 1977). Antes, ironizava-se a recusa, por parte dos índios, de conceder os predicados da humanidade a outros homens; agora se sublinha que eles estendem tais predicados muito além das fronteiras da espécie, em uma demonstração de sabedoria “ecosófica” (Århem 1993) que devemos emular, tanto quanto permitam os limites de nosso objetivismo
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    A anedota revela algo mais, como veremos. Por ora, observe-se que seu “ponto” geral é simples: os índios, como os invasores europeus, consideravam que apenas o grupo a que pertenciam encarnava a humanidade; os estrangeiros estavam do outro lado da fronteira que separa os humanos dos animais e espíritos, a cultura da natureza e da sobrenatureza. Matriz e condição de possibilidade do etnocentrismo, a oposição natureza/cultura aparece como um universal da apercepção social. Em suma, a resposta à questão dos investigadores espanhóis era positiva: os selvagens, realmente, têm alma.{26}
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